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25 de Abril de 2024

Magistrados federais publicam carta aberta em defesa do juiz de garantias

Para 50 juízes e desembargadores que assinam texto, passo é decisivo para a superação do processo penal inquisitivo

Publicado por Jota Info
há 4 anos

Cinquenta juízes e desembargadores federais assinaram uma carta aberta em defesa do juiz de garantias. Para eles, a “criação do juiz de garantias representa a qualificação da garantia do juiz imparcial” e “um passo decisivo para a superação do processo penal inquisitivo, onde a figura do juiz se confunde com a do investigador/acusador”.

A carta é assinada, dentre outros, pelas juízes Claudia Maria Dadico e Ana Inés Algorta Latorre, que atuam respectivamente em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, e pelos desembargadores Ney Bello, do TRF1, e Rogerio Favreto, do TRF4.

Leia a íntegra:

“A Lei n. 13.964/19 modificou o Código de Processo Penal para, dentre outros pontos, introduzir no sistema de justiça criminal brasileiro o “juiz das garantias”, cujas atribuições consistem em controlar a “legalidade da investigação criminal” e garantir os “direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário” (art. 3º-B, CPP).

Sem entrar no mérito das demais modificações operadas na legislação penal e processual penal brasileira pela Lei n. 13.964/19, nós, juízas e juízes federais abaixo identificados, manifestamos nosso apoio à adoção, no Brasil, do instituto do “juiz de garantias”. Trata-se de figura indispensável à densificação da estrutura acusatória de processo penal (imparcialidade do juiz e separação das funções dos sujeitos processuais) e à concretização de direitos humanos.

Ao dispor sobre o “juiz de garantias”, a nova lei estabelece uma hipótese de divisão da competência funcional do juízo e de impedimento decorrente dessa divisão: a competência do “juiz das garantias” finda ao ser recebida a denúncia ou queixa (art. 3º-A, CPP), de modo que, se uma/um magistrada/o atuar na fase preliminar de investigação, não terá competência funcional para jurisdicionar no processo, porquanto objetivamente impedida/o de instruir e julgar as ações penais dela originada, sob pena de nulidade de suas decisões[1] (art. 3º-D, CPP).

Eventuais dificuldades logísticas decorrentes do afastamento do juiz das garantias/juiz da instrução e julgamento da sede do juízo onde tramita o inquérito/ação penal podem ser resolvidas com regras de distribuição dos feitos entre juízas/es com competência criminal a serem editadas pelos tribunais e com recursos tecnológicos do processo eletrônico, que tornam cada vez mais realizável a ideia de “núcleos regionais das garantias”[2] criados a partir de critérios prévios, impessoais e objetivos. Mesmo em uma vara única em que atuem dois juízes, por exemplo, basta determinar que, no processo em que um deles atue como juiz de garantias, o outro jurisdicione como juiz de processo e vice versa. Não há órgão novo. Não há nova instância. Há divisão funcional de competência.

Afigura-se a novidade como um passo decisivo para a superação do processo penal inquisitivo, onde a figura do juiz se confunde com a do investigador/acusador, indo ao encontro do modelo acusatório consagrado na Constituição da República (arts. 129, I e 144). Com o “juiz de garantias”, aprofundamos a estrutura acusatória do sistema de justiça criminal, impedindo a indevida e indesejável cumulação das funções de garantia e as de julgamento, pois a/o juiz/juíza que decide sobre (ausência de) culpa não participa da investigação criminal, não produz prova por iniciativa própria e tampouco fundamenta condenação com elementos de convicção obtidos sem contraditório judicial. Com o novo regramento, cabe à juíza/ao juiz de julgamento conhecer apenas os atos de prova produzidos em contraditório, e não mais os atos de investigação conduzidos pela/o juíza/juiz das garantias, que permanecem acautelados em juízo distinto, sempre com acesso às partes (art. 3º-B, §§ 3º e 4º, CPP). Na figura do “juiz das garantias”, cria-se “circunstância que objetivamente afastará o magistrado da fantasmagórica suspeita de acusador/investigador, tão rechaçada pelos instrumentos internacionais de direitos humanos”[3].

Além disso, a nova divisão funcional de competências atua no sentido da preservação da imparcialidade do juiz de julgamento, aprimoramento há tempos exigido não só por nossa Constituição da República desde 1988 como, também, pelas disposições normativas e jurisprudenciais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, razão pela qual grande parte dos países da América Latina já introduziram a figura do “juiz das garantias” em seus sistemas de justiça criminal.

A criação do “juiz de garantias” representa a qualificação da garantia do juiz imparcial tal como compreendida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao interpretar o artigo 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a exemplo dos casos Castillo Peruzzi, Durand e Ugarte, Cantoral Benavides, todos versus Peru, bem como no Caso Tibi versus Equador, nos quais a Corte concluiu ser imprescindível a “separação de funções entre o juiz da fase da investigação e o do processo, sob pena de violar-se a imparcialidade do julgador.”[4]

No caso Castillo Peruzzi versus Peru, a CorteIDH concluiu ter havido violação à garantia do juiz imparcial ao detectar “coincidência entre as funções de luta antiterrorista das Forças Armadas e o desempenho jurisdicional” por parte dos “tribunais militares, que seriam ao mesmo tempo parte e juiz nos processos. Para a CorteIDH, se o mesmo juiz que instrui a investigação exerce as funções de julgamento, a garantia do jurisdicionado a um juiz imparcial estará violada.” No caso Durand e Ugarte, a CorteIDH entendeu que “a justiça militar peruana tanto foi a encarregada pela investigação quanto pelo processamento dos militares envolvidos”, havendo, portanto, “grave violação à garantia processual do juiz imparcial.” Por fim, no caso Cantoral Benavides versus Peru, a CorteIDH manteve o entendimento firmado nos casos anteriores, concluindo que o acúmulo das funções de conduzir investigações e instruir/julgar processos penais aniquila a garantia de um juiz imparcial, o que se apresenta “totalmente dissonante com o sistema acusatório, para o qual a garantia da imparcialidade é alicerce.”[5]

Defendemos que a melhor justiça criminal será prestada por uma magistratura que recusa a renitência persecutória de Javert e também o arbitrário aprisionamento das diferenças pelo Alienista. Repudiamos o papel de juiz que se mostra “de braços dados com a acusação, em uma cruzada pelo clamor público e pelos valores morais e absorvendo todo o discurso moralista do senso comum”. Trata-se de um erro que se torna “maior ainda quando Deus invade o Estado laico e conclama a todos para a cruzada metafísica contra um inimigo etéreo.” A ideia de um juiz combatente “nos faz abandonar a construção moderna de um Poder Judiciário independente, imparcial e afirmativo dos direitos fundamentais.”[6]

Juramos cumprir e fazer cumprir a Constituição, garantindo as liberdades públicas e concretizando direitos mesmo que – ou especialmente quando – as maiorias de ocasião, sejam as das ruas ou as dos gabinetes, possam com seu ódio aniquilar as minorias políticas. Não seremos nós os Porteiros da Lei.

___________________________________________________________________________________________

[1] LOPES JÚNIOR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Entenda o impacto do Juiz das Garantias no Processo Penal. Conjur, 27/12/19. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-27/limite-penal-entenda-impacto-juiz-garantias-processo-penal. Acesso em: 29 dez. 2019.

[2] SANTOS JUNIOR, Edinaldo César. O sistema interamericano de direitos humanos: a garantia do juíz independente, imparcial e pré-constituído e seus reflexos no direito brasileiro. 2013. 271 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito, USP. São Paulo. p. 246.

[3] SANTOS JUNIOR, O sistema interamericano de direitos humanos, op. cit., p. 238.

[4] SANTOS JUNIOR, O sistema interamericano de direitos humanos, op. cit., p. 238.

[5] SANTOS JUNIOR, O sistema interamericano de direitos humanos, op. cit., p. 118-120.

[6] BELLO, Ney. O Juiz combatente: a falácia da pós-modernidade. Justificando, 24/8/18. Disponível em: http://www.justificando.com/2018/08/24/o-juiz-combatenteafalacia-da-pos-modernidade/. Acesso em: 29/12/19″.

ASSINATURAS

  • Ana Inés Algorta Latorre, Juíza Federal, SJRS/ TRF4
  • Antônio Lúcio Túlio de Oliveira Barbosa, Juiz Federal, SJBA/TRF1
  • Antônio José de Carvalho Araújo, Juiz Federal, SJAL/TRF5
  • Augustino Lima Chaves, SJCE/TRF5
  • Célia Regina Ody Bernardes, Juíza Federal, SSJ Teixeira de Freitas/TRF1
  • Celso Kipper, Desembargador Federal/TRF4
  • Claudia Maria Dadico, Juíza Federal, SJSC/TRF4
  • Cláudio Henrique Fonseca de Pina, Juiz Federal, SJPA/TRF1
  • David Wilson de Abreu Pardo, Juiz Federal, SJDF/TRF1
  • Diego Carmo de Sousa, Juiz Federal, SJBA/TRF1
  • Edevaldo Medeiros, Juiz Federal, SJSP/TRF3.
  • Edvaldo Mendes da Silva, Juiz Federal, SJSC/TRF4
  • Eduardo Pereira da Silva, Juiz Federal, SJGO/TRF1
  • Fábio Fiorenza, Juiz Federal, SJMT/TRF1
  • Felipe Mota Pimentel de Oliveira, Juiz Federal, SJPE/TRF5
  • Filipe Aquino Pessôa de Oliveira, Juiz Federal, SSJ Guanambi/TRF1
  • Flávio Antônio da Cruz, Juiz Federal, SJPR/TRF4
  • Francisco Donizete Gomes, Juiz Federal, SJRS/TRF4
  • Gabriela Azevedo Campos Sales, Juíza Federal, SJSP/TRF3
  • Gilton Batista Brito, Juiz Federal, JFSE/TRF5
  • Grace Anny de Souza Monteiro, Juíza Federal, SJRO/TRF1
  • Isaura Cristina de Oliveira Leite, Juíza Federal, SJDF/TRF1
  • Jacques de Queiroz Ferreira, Juiz Federal, SJMG/TRF1
  • Jorge Maurique, Desembargador Federal/TRF4
  • José Carlos Garcia, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
  • José Henrique Guaracy Rabelo, Juiz Federal Emérito, SJMG/TRF1
  • Lincoln Pinheiro Costa, Juiz Federal, SJBA/TRF1
  • Luciana Bauer, Juíza Federal, SJPR/TRF4
  • Luís Praxedes Vieira da Silva, Juiz Federal, SJCE/TRF5
  • Luiz Fernando Wowk Penteado, Desembargador Federal/TRF4
  • Marcelo Eduardo Rossitto Bassetto, Juiz Federal, SSJ São Sebastião do Paraíso/TRF1
  • Marcello Enes Figueira, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
  • Marcelo Elias Vieira, Juiz Federal, SJRO/TRF1
  • Marcos Antonio Garapa de Carvalho, Juiz Federal, SJSE/TRF5
  • Marcus Vinícius Reis Bastos, Juiz Federal, SJDF/TRF1
  • Ney Bello, Desembargador Federal/TRF1
  • Paulo Roberto Parca de Pinho, Juiz Federal, SJPE/TRF5
  • Pedro Pimenta Bossi, Juiz Federal, SJPR/TRF4
  • Polyana Falcão Brito, Juíza Federal, SJPE/TRF5
  • Ricardo José Brito Bastos Aguiar de Arruda, Juiz Federal, SJCE/TRF5
  • Ricardo César Mandarino Barretto, Juiz Federal Emérito, SJPE/TRF5
  • Rodrigo Gaspar de Mello, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
  • Rogério Favreto, Desembargador Federal/TRF4
  • Roger Raupp Rios, Desembargador Federal/TRF4
  • Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar, Juiz Federal, SJAL/TRF5
  • Simone Schreiber, Desembargadora Federal/TRF2
  • Thalynni Maria de Lavor Passos, Juíza Federal, SJPE/TRF1
  • Vanessa Curti Perenha Gasques, Juíza Federal, SJMT/TRF1
  • Victor Curado Silva Pereira, Juiz Federal, SSJ de Balsas/TRF1
  • Victor Roberto Correa de Souza, Juiz Federal, SJRJ/TRF2


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2 Comentários

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BOA TARDE
Em análise do caso, vale ressaltar que, o que seria preciso mesmo é uma análise do inquérito por parte do MP e dos Juízes, porque a maioria dos casos eles ratificam , prisão temporária e preventiva, mesmo sem questionar ato das autoridades do MP e polícia - absurdo. Ademais, falam em caso de erro que confiava da idoneidade deles.
Por outra análise, independentemente de ser civil, criminal e administrativo, a defesa técnica para manutenção da justiça é fundamental, como determina a CF - 133, entretanto no âmbito administrativo seria dispensado - aberrante. continuar lendo

A criação de um "juiz de garantias" é o mesmo que admitir que alguns juízes, da maneira com o está a organização atual, são parciais.

Em uma análise mais fria o juiz de garantias´seria um ser incorruptível enquanto os demais não gozam desta presunção.

Terra tupiniquim tem leis tupiniquins. continuar lendo